Quilt: Os Restos me Interessam

By 12 de julho de 2016novembro 11th, 2023Lixo Ordinário

Acací de Alcantara

 

Uma história pede para ser contada; ela não se fez e nem se faz com palavras. Ela tem suas peculiaridades: é imagética, utilitária, construída com tecidos, tesoura, agulha e linhas. Faz-se a si própria sempre que pequenos pedaços de tecido são unidos formando um novo padrão.

Filha da necessidade, surgiu de maneira rústica, sem beleza, o que movia era o frio e a escassez. Mãos habilidosas uniam os pedaços de tecidos impulsionadas por motivos econômicos sem nenhum senso estético. Graças a alma que clama por beleza e poesia, com o passar do tempo, estes pedaços de tecidos começam a ser unidos de modo que as peças, além de serem úteis, também passassem a ser belas. Elas protegiam e aqueciam o corpo e a casa, bem como, enchiam os olhos; alimentavam a alma com os novos padrões que se formavam a medida que os retalhos iam sendo justapostos.

Uma peça usada pode ser recortada utilizando-se as áreas preservadas; a partir da roupa velha e gasta, cria-se algo novo. Restos são ressignificados: uma camisa velha torna-se parte de uma colcha de casamento, um pano descorado ganhará nova vida em uma toalha

Não é por acaso que trago este tema para discussão, este é o mantra diário dos analistas: transformar, ressignificar. Não é exatamente isto o que fazemos?

Trabalhamos com as dores, com o que incomoda, com o que é petrificado; são os equivalentes da camisa desgastada, muitas vezes apertada e fora de moda, com partes puídas que ainda ainda assim continua sendo usada.

O insight permite arrancar a camisa, mas teremos um resíduo. A primeira idéia é descartá-lo, lixo ordinário!

Acompanhamos frequentemente tantos insigths que se perdem. A transformação só se dá no momento em que uma nova tessitura se cria! A camisa se transforma em outra peça, que em algum momento será o resíduo que gerará o movimento do eterno solve et coagula alquímico.

A maneira das primeiras quilteiras,  trabalhamos com os restos. Somos artistas ou artesãos? James Hilman propôs o modelo do bricoleur como metáfora para o modelo de trabalho do sonho  “…o bricoleur do sonho é um trabalhador manual, que toma os pedaços de lixo abandonados pelo dia e brinca com eles, juntando os resíduos numa colagem. Ao mesmo tempo em que os dedos que formam um sonho destroem o sentido original desses resíduos, também os formam num novo sentido dentro de um novo contexto” (James Hillman, O sonho e o mundo das trevas, tradução de Gustavo Barcellos, Petrópolis: Editora Vozes, 2013).

A bricolagem é um fazer artesanal que se utiliza dos restos reaproveitáveis. O bricoleur precisa ter olhos experimentados, capazes de uma varredura lenta, e sabem identificar o que é aproveitável. No caso do quilt, ele identifica os retalhos ainda fortes que podem compor um novo tecido.

A matéria com que trabalha o analista, vista a partir da metáfora do bricoleur, pode se considerar que sejam as emoções, com a diferença que ele (analista) utiliza também os  resíduos; partes gastas, rotas, puídas, para criar o novo. Nada é descartado: o velho e o feio podem compor um novo padrão harmônico. O trabalho é realizado pela imaginação. Renata Wenth que enfatizou a metáfora do analista como bricoleur salienta o trabalho da imaginação “deformando, alterando e costurando as percepções” (Renata Cunha Wenth, “Bricoleur: uma possível imagem para o trabalhar da análise”, artigo escrito em 2003 para o III Congresso Latino-Americano de Psicologia Junguiana em Salvador, Bahia. Disponível  em www.ijpr.org.br).

Creio que os paralelos entre fazer um quilt, o trabalho do analista e a metáfora do bricoleur estejam claros para todos, mas talvez muitos se perguntem o que vem a ser exatamente um quilt.

Pois bem, o quilt é um acolchoado composto por três camadas: a de cima chamada top é feita pelo patchwork, a camada central que acolchoa e aquece e a terceira é o forro que dá o acabamento por baixo e pelo quilt propriamente dito, que são as costuras que unem as camadas.

O quilt é um tipo de trabalho genuinamente americano, que chegou ao Brasil nos anos 1990 com a globalização e a hiper-mobilidade social, através daqueles brasileiros que viveram nos Estados Unidos, fruto de trabalho ou de estudos, e que, ao retornarem,  trouxeram a técnica em sua bagagem e passaram a difundí-la através de Ateliês.

Minha aproximação com a técnica do quilt deu-se justamente em um Ateliê e me abriu um mundo que até então desconhecia.

Segundo Marcia Maria Cavalieri,“ A origem deste trabalho de união de retalhos não é precisa; os primeiros registros se dão em peças egípicias,, nas quais foram encontradas algumas roupas e mantas que se utilizavam desta emenda de retalhos. Outros registros estão presentes, principalmente na Europa e Ásia. […] os trabalhos possuem caráter utilitário […] utilizados como mantas para proteger bebês e também usados como vestimenta.” (Marcia M. Cavalieri, Patchwork: Retalhos de Técnica, Memória, Arte e Artesanato).

Com a ida dos colonizadores ingleses para os Estados Unidos em meados do século XVII, os trabalhos passam a ter um caráter não so mente utilitário.

Devido a rigidez dos pioneiros protestantes, as mulheres eram incentivadas a um fazer manual para que se mantivessem ocupadas e assim não teriam tempo de pensar obscenidades. Elas só tinham permissão para sair em dois momentos: ir a igreja ou para as quilting bees (reunião de quilteiras). Nestas reuniões faziam colchas, roupas e cortinas de retalhos, das sobras de panos, ou mesmo, de roupas velhas , porque não possuíam dinheiro nem opções onde comprar tecido. Em vez de costurar os retalhos de qualquer jeito, essas quilteiras pioneiras planejam e costuram formando padrões artísticos, dando vazão as suas ambições, desejos e sentimentos (Marcia M. Cavalieri, Antthony: Hackenberger, 2005, p. 24).

Podemos pensar na deusa Ananke, a Necessidade, mãe de todas as coisas, como o primeiro impulso para a utilização dos restos de tecido ou da roupa velha, mas para alma unir pedaços não basta, ela vai muito além do necessário. Os trapos passam a ser rearranjados de forma harmônica e bela, tornando-se uma nova peça com outra função; assim entramos nos domínios do bricoleur e de suas percepções que permitem que encontre ouro no lixo.

Este lixo gera quilts que, segundo Márcia Cavalieri, podem ser reunidos  em 3 categorias: técnico ou comercial, artístico e de memória.

A prática do quilt era um fazer coletivo, cada uma das participantes cosia uma parte e depois todas eram unidas formando um todo, tarefa bastante difícil já que cada uma tinha um modo próprio de trabalhar o que tornava difícil agrupá-las de maneira a dar graça e equilíbrio a composição. Para dar uma solução a esta dificuldade passou-se a trabalhar dentro de padrões que seguem uma regra. Este é o patchwork técnico que está presente em peças utilitárias como as colchas, toalhas, almofadas. É a modalidade mais utilizada pelos artesãos.

O chamado quilt artístico ao contrário de uma peça utilitária; é uma obra de contemplação. Este tipo de quilt se desenvolveu a partir dos anos 70. Cavalieri destaca que: “Muitos atribuem como introdutora do quilt artístico, Jean Ray Laury. sua formação se deu na Faculdade de Artes na Universidade de Stanford e é considerada a pioneira na exploração moderna do quilt.

Também contribuiu para o desenvolvimento desta modalidade uma exposição de quilts antigos montada no Museu Whitney de Arte em Nova York em 1971.

O movimento feminista colaborou para a afirmação desta categoria. Continuamos com Cavalieri: “Susan Shie Wooster foi uma artista que explorou o quilt por causa de sua conexão com a cultura feminina, constatando que por trás destas peças haviam vozes sufocadas deste segmento da população. […] sua contribuição, além deste reconhecimento está no impulso e incentivo dado às mulheres para que se expressassem de forma livre, executando este trabalhos de cunho artístico.”

A modalidade que mais me toca e me emociona é o quilt de memória; ele também tem a sua beleza estética, mas não é o seu aspecto mais importante. Da maneira que vejo esta categoria é a que se utiliza mais dos restos, não exatamente sobras de tecido, uma vez que hoje estamos em tempo de fartura de materiais e há uma industria que serve e se serve das quilteiras que movimenta, somente nos Estados Unidos, 2 bilhões de dólares ao ano. Os restos há que aqui me refiro são as emoções, a alegria e a dor.

O quilt de memória tem um tema e uma intencionalidade; conta uma história. É carregado de carinho e boas energias para quem irá usá-lo. Ele pode ser, por exemplo, uma colcha de casamento… uma peça para elaborar o luto.

Há um filme intitulado How to make an american quilt que exemplifica esta idéia. Este filme mostra um grupo de mulheres velhas que se reúnem  durante a vida para fazer quilts (recordem-se das quilting bee) e neste encontro farão a colcha de casamento de uma jovem, neta de uma das quilteiras e a protagonista do filme.

O tema da colcha é o amor; cada uma das participantes fará um bloco que depois será unido aos outros blocos, formando assim uma colcha que seguirá um padrão harmônico ditado pela coordenadora do trabalho.

A partir do tema, cada uma das participantes vai buscar dentro de si imagens sobre o amor, assim se inicia um processo de buscar no lixo ordinário das mágoas, das frustrações e dos prazeres, o amor. São mulheres viúvas, divorciadas, traídas, mal amadas ou demasiado amadas, que durante a feitura da colcha, têm a oportunidade de ressignificar as suas vivências do amor, os restos esgarçados, as dores que puderam ser reaproveitadas e, com elas, comporem um novo quadro elaborado pelas mãos do bricoleur (https://www.youtube.com/watch?v=PNIiPBsnftI).

Uma história tocante que se refere ao quilt de luto é a de uma quilteira que, depois da morte de seu pai, fez alguns quilts utilizando as camisas dele e presenteia cada um dos netos para que tenham uma recordação do avô perto de si.

Dentro da mesma linha, temos a conhecida colcha feita em memória das pessoas mortas pela AIDS. Ela teve início em San Francisco com Cleve Jones (o mesmo organizador da Marcha das Velas em memória de Harvey Milk) que sabendo dos números de vítimas da AIDS em sua cidade, convidou as pessoas para fazerem cartazes com os nomes dos falecidos por esta doença. Os participantes da marcha subiram em escadas e colocaram os painéis com os nomes na parede do San Francisco Federal Building, que ficou parecendo um quilt.

Em 1987, a colcha elaborada como um memorial às vítimas da AIDS foi mostrada pela primeira vez em Washington em uma cerimônia imersa em dor e emoção. Quem perdeu um ente querido teve a oportunidade de dar vazão a sua dor e de imortalizar o nome de um companheiro, filho, amigo ou irmão.

The Names Project Foundation, hoje abriga The AIDS Memorial Quilt que pesa 54 toneladas e possui mais de 94000 nomes. Estes dados são de 2012. A fundação continua aceitando blocos em memória de quem faleceu de AIDS, wwwnamesfoudation.com (https://www.youtube.com/watch?v=DHvwHojloks).

Bem, sob regência do bricoleur preparei este o bloco para nossa grande colcha que tem como tema “Lixo Ordinário”; uni meus retalhos de analista e quilteira. Espero que ele ajude a compor um todo harmônico em nossa quilting bee na Mantiqueira.
30 de abril de 2016