Ode ao Urubu

By 12 de julho de 2016novembro 11th, 2023Lixo Ordinário

Marisa Penna e Wládia BeatrizUrububatuba By Wladia_dez 2015

 

—Apresentação performática (texto, música, filme e imagens)

Marisa Penna se vestiu como urubu e Wládia Beatriz como Gari/Margarida. As duas entram por portas diferentes no Galpão do Sítio Pedra Grande em São Francisco Xavier.

Caminham lentamente. Marisa “abre as asas”. Seguem em direção ao centro do Galpão e recitam:

Tudo vira lixo
Tudo pode virar lixo
Carta de amor vira lixo
Conta pra pagar vira lixo
Seja como for tudo pode virar lixo
Namorado, gato, tio
Até seu pavio
Também pode virar lixo
Tudo que se acende se apaga
Fósforo se apaga
Vela, incêndio, lamparina
O olho da menina até o seu
Tudo pode se apagar
Tudo pode se acabar
E virar lixo…

Wladia  – Agradeço pela oportunidade de mais uma vez compartilhar imagens e reflexões com os amigos da psicologia arquetípica no Sitio Pedra Grande que tanto nos acolhe e nos anima.  Gratidão fraterna ao Gustavo, “amigo de fé e irmão camarada” (Trecho da Música Amigo, de Roberto e Erasmo Carlos).

O tema do lixo, do lixo ordinário nos deu muito trabalho… O urubu literalmente atravessou nosso caminho e nos fez vê-lo como um tipo de cavaleiro medieval da alma.

Marisa – Agradeço por este encontro:

Ao Urubu,

Ao Gustavo pela provocação,

A vocês por ouvirem,

Aos amigos que ajudaram a viabilizar essa apresentação.

Wladia – Ele, o urubu, parece ter pedido para ser lembrado, como falar de lixo? Resíduos, vida e morte? E não falar deste pássaro negro, chamado Urubu?

Urubu do Tupi-Guarani, Uru – ave grande; bu – negro (Dicionário de Palavras Brasileiras de Origem Indígena, Clóvis Chiaradia e Dicionário Informal).

Na nossa Ode, no nosso canto ao Urubu, a esta ave grande e negra, pretendemos homenagear os trabalhadores da terra, os “amigos garis”… Eu que quando criança sonhava em ser Margarida*, varrer ruas. Varreduras!

*Margarida, na cidade de São Paulo, são as mulheres que varrem as ruas e cuidam do lixo urbano. Varrendo e recolhendo o lixo das ruas!

Marisa – O lixo urbano chama minha atenção há algumas décadas.

Acalento um sonho de trabalhar com o processamento do lixo desde que via os pneus de carros jogados às margens dos rios Tietê e Pinheiros, em São Paulo.

Ainda hoje, farejo esse sonho! Agora, faria uma usina de tratamento dos vidros e assim me vejo como um catador de lixo – quem sabe um urubu.

Wladia – Hoje me visto como um deles (Garis e Margaridas). Teria eu me tornado uma Margarida? O que há de comum entre Margarida, Psicóloga, Palhaça e Urubu?

Nesta Ode, também ressaltaremos a beleza e o encanto dos trabalhadores do céu! Os “amigos urubus”. O que seria de nós… sem eles?

No verão de 2015, caminhávamos, Marisa e Eu, em Ubatuba, no litoral norte de São Paulo, e pela praia… Distraidamente… Como escreveu Paulo Leminski: “Distraídos venceremos!E com o tema do lixo, na cabeça e entre nós. Os Urubus cruzaram nosso caminho, e nós cruzamos o caminho deles… Cruzamento de caminhos!

Posaram para nós!

Marisa – Esse pássaro negro, desperta sentimentos.

Em geral, de início de distanciamento — ave de mau agouro!

Com esse trabalho passo a também sentir apreço por Urubus.

Wladia – Minha reação diante do Urubu ali tão perto na praia… Tão perto… E distraídos… Foi de encantamento, me sentia como uma criança. E eles… Distraídos, nos venceram!

Fiquei fascinada e disse à Marisa, vamos falar de Urubu em São Chico?! Também encantada por eles, ela topou!

Então, a Ode apareceu em nosso caminho!

Marisa – Descobri no Urubu, um trabalhador incansável.

Não é uma ave de rapina, não mata para comer, come carne morta, não viva;

Aguarda sua vez para comer o que outros animais deixaram. Não disputa — alimenta-se calmamente de restos.

Sua capacidade de planar é enorme em duração e altitude – alcança até 2.800 metros de altura, voando em círculos.

Sente cheiro de carniça há 50 quilômetros de distância.

Como reconhecer o urubu em nós?

(Neste ponto da apresentação, ouve-se a canção de Tom Jobim do LP Urubu, de 1975.)

Wladia – Gaston Bachelard nos diz: “Parece que o ser voante ultrapassa a própria atmosfera em que voa; que um éter se oferece sempre para transcender o ar; que um absoluto completa a consciência de nossa liberdade… e continua… o primeiro princípio da imaginação ascensional: de todas as metáforas, as metáforas da altura, da elevação, da profundidade, do abaixamento, da queda, são por excelência metáforas axiomáticas (inquestionável e evidente). Nada as explica e elas explicam tudo… Essas imagens são de um poder singular: comandam a dialética do entusiasmo e da angustia”. Grifo nosso. (em O ar e os sonhos: ensaio sobre a imaginação do movimento, pgs. 10 e 11.)

“Urubu é Mestre do Voo… é Gari do Céu”! (escreve o compositor Joãozinho Gomes, de Belém do Para).

“Urubu não se cansa, Vê na morte a sua esperança” (canta a paulistana Ana Cañas).

Urubu alimenta-se do que é morto! O que em nós é como comida de urubu?

Marisa – Quantas emoções, sentimentos, memórias estão apodrecendo em nós, requerendo a presença do Cavaleiro Medieval da Alma?

Wladia – Quando e como chamamos pelo urubu, para comer aquilo que em nós morreu?

Seria o luto o alimento do urubu?

Seria o luto, a carniça que atrai o olfato do urubu? Ele fareja a decomposição/a degradação da vida.

Marisa – Qual seria o lixo, em nós, que nem Urubu come?

Wladia – “…no fim das enchentes, urubus andam de a pé.

…no alto da arvore mais próxima, antes mesmo do bicho encomendar, urubu já discute, em assembleia, com os primos, quem que vai no olho, quem que vai no anus. Depois… Degustam, enviezam, revezam e se esvaziam — para comer de novo….

…Pessoa que comer carne de animal que morre estará imunda até de tarde – e desse modo se purificará… Nenhuma voz adquire pureza se não comer na espurcícia. Quem come pois do podre se alimpa…Sujeito que entende pois de limpeza há de ser o urubu. (Grifos nossos). Só ele que logra os vermes de frente. São entes muito sanitários. Conquanto que delimpam até o céu.

Como eles, sobre as pedras, Manoel cata restumes de estrelas. É muito casto o restume!

Marisa – Manoel de Barros, no Livro de pré-coisas.

Wladia – Urubu: Cavaleiro Medieval (um defensor da ALMA). Aquele que reina na decomposição, na morte na putrefactio.

Estamira… A mulher urubu, trabalhadora incansável, que via na morte a sua esperança, sabia o quão casto é o restume. Tirava do lixo o seu alimento. Reinava no lixão, como a grande cavaleira medieval.

Tida como louca…

Seria a loucura, um tipo de lixo (que não serve?).

Poderia ser a loucura, um resíduo?

Algo que sobra?… E pode ser reaproveitado?

Poderia ser nosso lixo extraordinário?

 

Vejamos e escutemos Estamira!

(Neste ponto, exibimos um pequeno trecho do filme Estamira, de Marcos Prado,2005.)
Estamira Gomes de Sousa (Estamira), conhecida por protagonizar documentário homônimo, foi uma senhora que apresentava distúrbios mentais, vivia e trabalhava (à época da produção do filme) no aterro sanitário de Jardim Gramacho, local que recebe os resíduos produzidos na cidade do Rio de Janeiro.

 

No momento da apresentação, o filme parou de rodar na metade da edição que tínhamos preparado. Não discutimos com Estamira! E seguimos para o final da apresentação.

 

Neste ponto, ouvimos a canção “Vira Lixo” na bela voz de Ceumar.

Referências Bibliográficas:

Leminski, Paulo. Toda Poesia, Companhia das Letras, 2014.

Bachelard, Gaston. O ar e os sonhos: ensaio sobre a imaginação do movimento, tradução de Antonio de Pádua Danesi, São Paulo: Editora Martins Fontes, 2001.

Barros, Manoel de. Livro de pré-coisas: roteiro para uma excursão poética no Pantanal, Rio de Janeiro e São Paulo: Editora Record,1985.

Referências Musicais: 

Chico Cesar / Suely Mesquita – Música – “Vira Lixo”, Cd da cantora Ceumar – Sempre Viva.

Roberto e Erasmo Carlos – Música – “Amigo”.

Tom Jobim / Junção de duas canções editadas do LP Urubu, de 1975. “O Boto” e “Saudade do Brasil”.

Joãozinho Gomes – Urubu (Mestre do Voo), Belém do Pará/2013.

Ana Cañas – Urubu Rei, São Paulo.

 

Filme:

Prado, Marcos (direção) e José Padilha (produção) – Estamira, 2005 – 121 min.

 

Ela acreditava ter a missão de trazer os princípios éticos básicos para as pessoas que viviam fora do lixo onde ela viveu por 22 anos. Para ela, “o verdadeiro lixo são os valores falidos em que vive a sociedade“, comentou Marcos Prado, diretor do filme. O documentário “Estamira” teve repercussão internacional, angariando muitos prêmios e o reconhecimento da crítica. (Wikipédia)

 

Imagens:

A maioria das imagens foi recolhida da Internet. Com exceção das fotos de Wládia Beatriz, realizada em Ubatuba, Litoral de São Paulo, em dezembro de 2015. Da série “Urububatuba”.