O Lixo do Deserto e o Rugido do Leão

By 9 de julho de 2016novembro 11th, 2023Lixo Ordinário

VeraVera Colson Valente

 

Queria dedicar essa minha pequena fala aos índios Xavantes da reserva de Marãiwatsédé e aos Guaranis-Kaiowá, que apesar de serem tratados como lixo, resistem e, ainda bem, continuam a fazer parte do povo brasileiro.

 

Já estamos no final do nosso encontro. Durante esses dias imaginamos o lixo de muitas formas, o que não é fácil, pois o lixo é o que não atrai, o que normalmente não tem nossa atenção, o que não tem importância. Com esse encontro, decidimos dar valor e atenção ao que jogamos fora como inútil, em um descarte cotidiano e por vezes perverso. Hoje, como nunca antes,  lixo de todos os tipos é produzido numa imensa quantidade.  Lixo que não serve para nada, que não pode nem mesmo ser reciclado ou reaproveitado. Apenas suja e enfeia nossas vidas. Que mundo é esse, que produz e joga fora na mesma proporção? Por quê descartamos tanto? Citando Hillman: “devemos cuidar da alma do mundo como cuidamos da alma das pessoas”. Para isso, vamos tentar abordar esse assunto espinhoso com o coração, nosso órgão que reflete e deseja o mundo.

 

Para começar, quero contar sobre uma viagem que fiz para a pequena cidade de São Felix, no norte do estado de Mato Grosso, às margens do belo e imponente rio Araguaia, um dos grandes rios que formam a bacia do Amazonas. Fomos visitar o bispo da Igreja Católica D. Pedro Casaldaglia, já idoso e doente. A viagem não tinha um objetivo religioso, mas político. Levávamos um prêmio que D. Pedro havia recebido pela sua luta por décadas na defesa dos índios e posseiros que habitam essa região longínqua do Brasil. Desde a década de 60, os projetos de ocupação patrocinados pela ditadura militar e mais recentemente pelos constantes avanços da monocultura exportadora de soja e da pecuária, expulsam da terra seus antigos donos. Decidimos ir de carro a partir de Brasilia, para saborear o caminho que nos levou cada vez mais para o interior. Da capital seriam 1200 km, sendo que os 300 últimos de terra.  Atravessamos o rio Araguaia na cidade de Barra do Garça e, já em Mato Grosso, seguimos pela estrada que segue paralela ao rio, até o Pará. Logo avistamos a serra do Roncador, um espetacular maciço que divide a bacia do Araguaia da bacia do Xingu e que ainda tem nas suas encostas a vegetação original. Porém, entre a serra e o rio, apenas plantações de soja formando um imenso tapete verde que cobre monotonamente a terra e que nos acompanhará por centenas de quilômetros. Nada da antiga diversidade de plantas e animais, nada da antiga diversidade de culturas que, até a algumas décadas, ainda dominavam essa região.  Na estrada,  caminhões e colhedeiras imensas mostram o poder do dinheiro, das sementes trangênicas, e da grande monocultura. É esse o nosso destino histórico?

Após 900 km, saímos dessa estrada principal e pegamos outra, de terra. A paisagem mudou totalmente. Entramos nas terras dos índios xavantes, chamada de Marãiwatsédé,  que acabaram de ser devolvidas aos índios, após  décadas de luta. Tribos de Xavantes foram retirados de lá pela ditadura militar e levados para acampamentos no sul do estado, para abrir espaço aos seus projetos de ocupação. Finalmente, as terras são novamente dos índios. Paramos no posto da Funai, na entrada da nova reserva, e conversamos com índios e policiais federais que tentavam garantir a ordem judicial de fazendeiros raivosos. Percorremos, então, quase 300 km de estrada de terra, dentro de um verdadeiro deserto. A terra estava sendo entregue aos índios completamente desmatada e vazia. Um deserto inútil e perverso. Suas plantas, animais e pessoas, transformadas em lixo.

Chegamos finalmente à pequena cidade de São Felix, banhada pelo rio Araguaia, agora divido pela ilha de Bananal, terra imemorial dos índios Carajá. Chegamos à casa de D. Pedro e de um pequeno grupo de padres que se dedicam a manter viva uma liturgia, que apesar de católica, não quer catequizar e converter, mas lutar pelo direito dos índios de preservar sua cultura e suas crenças, tão frágeis e ameaçadas como a dos índios Carajá. Fomos visitar sua reserva do outro lado do rio. Apesar das imensas dificuldades, que levaram a uma série de suicídios recentemente, os Carajá  mantém sua cultura, sua língua e os dois pequenos círculos pintados no rosto de todos, que marcam sua identidade. Havíamos chegado ao Brasil chamado de profundo, mas não encontramos o atraso, como a visão de desenvolvimento afirma, mas a diferença. Para nós, a profundidade faz alma, e sabemos que a alma é politeísta. Quanto mais aprofundamos o Brasil, mais encontramos a diversidade, a multipicidade, o seu natural politeísmo. Em São Felix, ironicamente, defendido por padres católicos.

Impossível não lembrar dos primeiros  jesuítas que aqui chegaram e de seu imaginário  ainda medieval. Chegaram ao Brasil sem conseguir ver, porque não conseguiam imaginar, os habitantes ancestrais de nossa terra. Viam apenas povos sem lei, deus ou rei, que deveriam ser subjugados para a glória da Igreja e do reino. Era o começo da era moderna, dos nossos tempos. Pela primeira vez em larga escala, culturas milenares eram transformadas em lixo, enquanto os que sobreviviam ao genocídio passavam a servir como mão de obra escrava ou para aumentar o rebanho de católicos. Enquanto a cosmovisão dos indígenas era destruída, seus corpos tinham utilidade para os novos donos da terra. Serviam para o trabalho, para o sexo ou para a fé. A imaginação monoteísta não queria se expandir e se transformar, o coração tinha que se manter anestesiado, mesmo tendo a frente as maravilhas recém descobertas do novo mundo.

Começava a expansão mercantil que, 500 anos depois, será chamada de globalização. Nesse processo, o domínio do monoteísmo cristão medieval foi sendo transformado no domínio do monoteísmo econômico, que hoje, vitorioso, molda e domina nossa psique. E o novo deus dos mercados, como o antigo Deus dos cristãos, também exige conversão e fé. Aos poucos, foi se espalhando pelas Américas e depois pela África e Ásia o domínio de um tipo de propriedade, um tipo de nação, um tipo de produção, um tipo de consumo, um tipo de comércio, um tipo de cidade, um tipo de trabalho, um tipo de corpo, um tipo de desejo, um tipo de coração. Falamos pouco sobre as idéias econômicas que tecem nossas sociedades e menos ainda sobre seus efeitos em nossa psique. Esquecemos que hoje, pensar nosso mundo sem as idéias econômicas é como pensar a Idade Média sem as idéias cristãs. E esse novo monoteísmo, que não cultua o deus transcendente, mas também tem crenças e dogmas, foi transformando tudo em mercadoria,  dando a tudo um preço, a toda terra deu um título de propriedade, a todo  valor criou um dono. Esse processo foi tão poderoso e excessivo que transformou em natural, o que era histórico, criando um pensamento único.

Como um verdadeiro deus, o mercado paira sobre nossas cabeças exigindo obediência e jogando no lixo tudo que não lhe interessa. É comum ouvirmos que os mercados estão nervosos, ou estão em depressão, ou estão animados. Ou, que os mercados exigem um ajuste fiscal, e que se ele não for feito, haverá castigos inimagináveis. Para conter a fúria desse novo deus, reformas econômicas tem que ser realizadas,  mesmo que afetem multidões e aumentem a pobreza.

Viver no mundo gerido pelas leis e desejos do mercado exige um esforço heróico  permanente. A todo o momento novas necessidades são criadas e os indivíduos são jogados numa corrida diária para uma permanente adaptação às novidades, que requerem mais e mais dinheiro para serem adquiridas. Rapidamente, objetos de desejo até ontem, são descartados e jogados no lixo. A exposição narcísica do dinheiro e dos bens adquiridos é necessária para garantir mais mercado, e criar diferenciação. Os que não podem ou não querem participar desse processo são vistos, e muitos acabam se vendo, como derrotados, incapazes, inferiores. A sombra cresce com  inveja, raiva, desejo satisfeito a qualquer preço, falta de ética ou de fraternidade. Ai está a origem da corrupção, jogando no lixo as regras necessárias para a convivência dos indivíduos. A conseqüência disso tudo é a violência nossa de todo o dia, descartando vidas e culturas.

E a alma ocidental adoece, com esta identificação coletiva com o empobrecido imaginário  mercantil. É ai que principalmente está o monoteísmo contemporâneo, com seu estilo de consciência heróico. Por trás das nossas idéias democráticas e civilizadas,  está o conjunto de regras dentro das quais o poder do mercado funciona. Idéias quase inquestionáveis, porque compõe esse poder que se expandiu por todos os continentes e subjugou multidões. E é este poder transnacional e sua busca pelo lucro que determina a produção e o lixo, o que não tem preço e o que deve ser descartado, o que pode ser reciclado ou o que pode ser reutilizado. Seu excesso permanente cria um lixo excessivo, inclusive lixo que não pode ser nem reutilizado, nem reciclado.

Conhecemos bem esse novo espírito mercantil. As nações americanas foram o resultado mais importante desse mundo plebeu que surgiu na Europa. Os povos indígenas e os africanos escravizados as suas primeiras vítimas, os que primeiro pagaram seu preço. Enquanto isso, a alma ocidental esquecida, produz narcisismo e ansiedade, insatisfação permanente e dissociação grave. Podemos dizer que a psicopatia nos persegue. A idéia narcísica de que tínhamos o verdadeiro e único Deus, foi acrescida pela idéia narcísica de que temos os verdadeiros valores e estilo de vida.

Como viver em uma época que transformou até pessoas, culturas, povos e nações inteiras em lixo? Com isso, quero levar nosso olhar e nossa imaginação para a parte da humanidade que não foi incluída nos lucros da expansão dos mercados e da globalização do capital, mas que teve sua vida profundamente atingida por ela. A parte que em todos os continentes foi empurrada para a periferia do novo sistema, após ter seu estilo de vida e de consciência destruído ou menosprezado pelo poder econômico que se impôs. Pela primeira vez na história, temos um imenso contingente de pessoas derrotadas que, do ponto de vista dos mercados, não serve para nada. Os excluídos dos lucros e benefícios da expansão mercantil que apenas geram medo e desconfiança nos que se sentem incluídos e privilegiados.

Falo da grande parte das populações das nações africanas, dos povos indígenas americanos, das multidões que vivem nas periferias das grandes cidades pelo mundo, dos que vivem nas grandes favelas da Índia, do Quênia, da Nigéria, do Brasil, das populações indígenas que vêem suas reservas ameaçadas, da população inteira do Haiti, das comunidades das antigas colônias portuguesas que conseguiram sobreviver a décadas de guerra civil, da população do Iraque e do Afeganistão, massacrada e aterrorizada pela guerra e ocupação militar, da população Líbia que viu seu estado ser destruído, das multidões que vivem em acampamentos de refugiados, da população sem perspectiva do norte da África que em desespero atravessa o Mediterrâneo, da população Síria que assiste a destruição de seu pais por interesses que não são seus. Pela primeira vez, do ponto de vista dos mercados, os derrotados no processo de globalização do capital e das mercadorias, não servem para nada. Nem para o trabalho lucrativo, nem para o consumo de bens, tem uma cultura que não serve para nada, uma língua desconhecida e inútil.  São multidões que apenas atrapalham os que se vêem civilizados e democráticos. A exclusão é quase absoluta. Multidões transformadas em lixo. E o mundo se torna cada vez mais um deserto árido de pouca imaginação. Quando não resignificamos  e incorporamos os detritos produzidos, o lixo se torna uma sombra ameaçadora. E a conseqüência tem sido  insegurança,  medo e  ódio. A alma do mundo está doente.

Foi-se o tempo em que italianos, alemães, japoneses e tantos outros, fugiam da pobreza e da falta de perspectiva de seus países e podiam vir para as Américas, encontrando fronteiras abertas e terras e nações receptivas às suas contribuições e ao seu trabalho. Muitos dos nossos antepassados fizeram este caminho. Agora, no mundo que se vê globalizado, as fronteiras nunca foram tão rígidas e excludentes, impedindo ou dificultando muito o deslocamento desses refugiados. Não há mais espaço disponível para eles. Hoje temos a globalização para o dinheiro, mercadorias e tecnologia, que vagam livremente pelo mundo. E preconceito, exclusão e confinamento para as populações sem esperança.

Dentre os pensadores que perceberam esse processo que se iniciava no século XX, quero lembrar o livro de Hanna Arendt, A banalidade do mal. Enquanto muitos viam o monstruoso e diabólico no holocausto perpetrado pelos nazistas, Arendt viu banalidade. Ela não encontrou no assassinato de milhões de pessoas objetivos religiosos, ritualísticos ou econômicos. Também não viu insanidade. Ela descreveu o holocausto, o assassinato de milhões de pessoas, judeus, ciganos, homossexuais e comunistas, como apenas  uma limpeza do que o poder nazista achava que tornava a narcisista Europa feia, fraca ou doente. Crimes contra a humanidade cometidos por homens ciosos de suas tarefas e de suas obrigações. Sem emoções. Sem culpa.  Apenas a limpeza do lixo.

Foi difícil pensar em como terminar esse trabalho. Acho que hoje é esse o processo que domina e impõe suas regras, e talvez tenha se tornado mais forte nos últimos tempos. E a resposta de multidões ao medo e à insegurança tem sido mais exclusão e mais violência.

Mas, como nos lembrou Hillman, o leão ruge enfurecido para acordar nosso coração anestesiado. Pela tradição, este é o animal que vive no deserto, pois é o animal do sol e do calor. É também agente da ressurreição e guardião dos túmulos. Seu rugido acorda o coração para as paixões da alma, para que o deserto se torne habitável. Apenas o desejo pelo consumo é pouco, apenas vivermos entre objetos que não tem alma é pobre.

O mundo ocidental, com sua ciência e tecnologia impressionante, nunca precisou tanto do leão, que vaga no deserto árido da modernidade. Seu rugido pode ser ouvido quando, nas franjas ou nas profundezas desse mundo desalmado, surge a resistência, a rebeldia, a crítica, o enfrentamento, o aprofundamento ou apenas a vida diferente, com novas tradições e possibilidades. Comecei contando sobre a minha viagem a São Felix do Araguaia e do meu encontro com D. Pedro Casalgdalia, por que lá pude ouvir o rugido do leão. O espírito que domina uma época nunca consegue destruir por completo outras formas de se organizar valores e a vida cotidiana, outros estilos de consciência. É ai que surge a esperança e a alma se faz.