Histórias de Velhas Gavetas

By 9 de novembro de 2014novembro 11th, 2023Gavetas

Cresci em uma família que carregava vivamente histórias e objetos de seus antepassados. Na casa de minha mãe, as memórias das diversas famílias que criaram a minha trajetória se misturavam. Sem hierarquias, mesmo com minha avó materna tentando mostrar a importância maior de sua família, os diversos caminhos familiares se cruzavam, misturando histórias do norte e nordeste brasileiro, do vale do rio Paraíba fluminense, do Rio do começo do século, de Trás os montes em Portugal, de Córdoba na Argentina, da Irlanda, da Inglaterra, do país de Gales. Quando cresci, descobri ascendentes indígenas e parentes negros, esses sem histórias ou relíquias, escondidos nos fundos das gavetas.

Esvaziar as gavetas de minha mãe nos deu, como em nenhum outro momento, a consciência da trama que nos fez, desse tecido familiar que misturou pessoas, povos, principalmente imensas diferenças, através de encontros pessoais surpreendentes. O nosso eu é obrigatoriamente múltiplo, o resultado provisório e momentâneo da soma e da subtração de tantas pessoas e influências, imaginando a fantasia dentro da qual nos reconhecemos.

Incrível a função das gavetas.  No quarto da minha mãe, de uma época em que as gavetas eram feitas para durar, havia uma velha cômoda quase centenária  e seu armário embutido que sobreviveu sem problemas por 50 anos. Lá estavam as coisas mais íntimas. Diferentes das estantes, prateleiras, mesas e mesinhas, que mostram os objetos mais bonitos ou valiosos, as gavetas guardam o íntimo. Aquilo que não pode ou não quer ser mostrado, o que já está velho ou meio quebrado, o que só tem um valor que não é óbvio, ou que denuncia algo que não deve ser visto. As gavetas, que podem ser um esconderijo por excelência, guardam o que, por ser íntimo, facilita a fantasia e a imaginação. É interessante lembrar que as gavetas foram inventadas no início da idade moderna, exatamente quando o indivíduo e a individualidade, como entendemos hoje, foram  imaginados.  Com este novo tempo veio a nossa idéia de vida privada, da importância da história individual ou familiar, do homem comum retratado com seus defeitos e qualidades.  Já não eram mais os deuses que estavam no centro, mas os homens. Surge, portanto, uma nova vivência do íntimo, o homem frente aos seus segredos. Antes, os velhos e grandes baús, feitos para serem transportados se necessário, mostravam a insegurança da vida medieval e não permitiam a classificação e organização que as sedentárias gavetas permitem. O homem cartesiano classifica até sua memória pessoal e tende a acumular lembranças da sua história, pois o indivíduo moderno é a sua história pessoal, o que ele conseguiu ser e juntar ao longo de sua vida. As gavetas foram imaginadas por este novo homem.

Vera Colson Valente