Dentro do Caldeirão Psíquico

By 1 de setembro de 2014novembro 11th, 2023Alma e Comida

Trecho da apresentação:

Como toda imagem, esta é forte e precisa: estamos dentro de um caldeirão e este é a psique.

A alma como um caldeirão.
E esta imagem se desdobra: somos cozidos, estamos fervendo e sendo mexidos em um movimento espiralado. Mudamos de cor. Ganhamos consistência, formamos um caldo grosso para sermos servidos, comidos e saboreados. Apreciados ou repudiados, digeridos.
Neste caldeirão também cozinhamos e toda cozinheira sabe o quão mágico é olhar para a panela, enfeitiçados esperamos justo aquela transformação. Alquimia realizada.
Esse tema nasceu de uma consulta ao I Ching, o oráculo chinês, um grande alimento para mim. O I Ching se autodefine como um caldeirão que transforma e alimenta.
Há alguns meses atrás, ao consultar o I Ching, me deparei com uma frase de Richard Wilhelm que dizia ter o I Ching quatro hexagramas que se referem à alimentação: o Caldeirão, o Poço, a Espera e as Bordas da Boca. Fiquei muito curiosa pois era justo o tema de nosso encontro e vislumbrei que o I Ching poderia então nos dar uma dica do que seria uma alimentação psíquica, já que seus hexagramas são retratos psíquicos. Então, estaremos vendo essas “imagens arquetípicas da alimentação”.

 

Os hexagramas do I Ching são claros: a psique é um poço de onde jorram forças inconscientes e na alma-caldeirão podemos cozinhá-las e nos servirmos. Se soubermos esperar: as respostas virão. Se nos alimentarmos corretamente, os sentidos se formam. Para entrarem, ou saírem, de sua grande boca aberta — uma constante troca.
Não estamos romanceando a vida vivida a partir da perspectiva da alma.
O caldeirão envolve fervura — isso dói e faz bolhas. Penso nas cebolas fritando no azeite, somos qual elas — quantas vezes não fomos “fritados”, fritados em nossos afetos, fritamos pessoas e situações também por conta deles? mas depois da fritura a cebola amolece, perde seu poder de nos fazer chorar, até adocica. Porém não acaba, logo virá água para fervermos: qual um tomate, nos sentimos derretendo. Parece sem fim. Mas todos estes processos tem seus porquês e não são eternos — quem sabe logo nos tornaremos um molho vermelho tipo rubedo, cheiroso, apetitoso —temperado à  nossa moda.
A despersonalização da mistura dos ingredientes nos dá a sensação de que iremos nos perder, bem como a espiral formada pelo mexer vigoroso  nos leva mais para o fundo, para o poço. E, é justo deste perder a forma que, talvez, possamos florescer.

Renata Wenth

Trecho da discussão:

Gustavo Barcellos: Você acrescenta um outro lado dessa coisa toda de alma e comida. Temos falado da alma da comida, e agora você trouxe a alma como comida. Com esse caldeirão você acrescenta uma outra perspectiva, um outro ponto de vista, da própria psique como um alimento.
Renata Wenth: Realmente eu acho que é o grande alimento. Se a gente não viver da alma…
Gustavo Barcellos: Isso é que é bonito no que você está trazendo. Você está entrando por um outro lado. “Se a gente não viver da alma…”, ou seja, a alma é o grande alimento mesmo.
Elizabeth Tassi: Queria falar alguma coisa da espera, porque lembrei muito da Emily Dickinson. Ela tem um poema, não sei reproduzir corretamente, mas é bem ligado a isso: diz que o tempo de espera é fundamental quando você passa um processo difícil. Então ela coloca mais ou menos assim: se você sofreu uma grande perda, uma grande dificuldade, deve apenas fazer trabalhos de agulhas ou de catar grampos, enquanto espera. Coisas leves, se ocupar com coisas pequenas e cotidianas, o que remete também à ideia — não sei o nome em austríaco ou alemão, que é a tradução do nome do livro — chama-se “Comida de fazer alma”. E o que é comida de fazer alma? É também comida de tempo de espera. O tempo de espera quando você tem um bebê, a tal quarentena. Ou quando tem um luto, ou se você sofreu um grande trauma. Quais são as comidas? São as tisanas fáceis de filtrar, os mingaus, as sopas e os caldos. Nada mais, nada que seja mordido. São coisas fáceis de deglutir. Então são as comidas de fazer alma, e são as comidas da espera. Do tempo quando eu tenho que esperar. Na hora que você falou me veio isso.
Gustavo Barcellos: É, alma e espera estão entrelaçadas o tempo todo.
Hermenegildo Anjos: Gostaria de ressaltar também outra coisa, Renata, que é a ênfase na alegria. Eu acho muito importante isso. Gisele Sarmento falou que realmente precisamos ter coragem para enfrentar o sofrimento. E é uma verdade, a gente precisa ter raça para agüentar. E às vezes não conseguimos, durante o período em que se está vivendo o sofrimento não conseguimos enxergar a poesia. Mas acho que a gente precisa desliteralizar isto. Estamos muito presos em uma metáfora de sofrimento, talvez seja coisa de uma era em que a ênfase é no martírio. E talvez agora nós estejamos entrando em uma outra era em que a ênfase não é o martírio. A alegria de você poder viver a vida, sofrendo, mas alegre ao mesmo tempo. As duas coisas não se excluem, você pode estar triste, você pode estar vivendo, mas você também pode estar satisfeito e alegre.