Catar, Reciclar, Recriar: Uma Poética Marginal

By 9 de julho de 2016novembro 11th, 2023Lixo Ordinário

Cristina Maranzana da SilvaO Louco_Tarot

 

(…) Sou um apanhador de desperdícios:
Amo os restos
como as boas moscas.
Queria que a minha voz tivesse um formato de canto.
Porque eu não sou da informática:
eu sou da invencionática.
Só uso a palavra para compor meus silêncios.
— Manoel de Barros, “Apanhador de Desperdícios”

Provocada pelo tema proposto nesse encontro, me senti desafiada a participar com uma reflexão a partir da psicologia arquetípica. Pois esse tema, em especial o catador, é uma imagem inaugural na minha atividade como psicóloga.

Preparar esta reflexão e compartilhar com vocês é catar nos resíduos e nas memórias todo o envolvimento inicial na minha vida profissional e colocar em um movimento impulsionado pela psicologia arquetípica. Dessa forma, artesanalmente me deparo com uma nova tessitura para a vida presente.

As leituras de Hillman, desacomodam, inquietam e conduzem a experimentar de outra forma e com outra perspectiva a psicologia. Instigam a uma re-visão, e também a um reciclar.  Sim, penso um re-ciclar de forma a continuar ciclando, circulando pelo “vale do mundo, com o objetivo de fazer alma, encontrando  conexões entre vida e alma, para uma aprofundamento em nós mesmos e no mundo” (James Hillman, Revendo a psicologia, tradução de Gustavo Barcellos, Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p.26).

Logo que me formei participei do Projeto Interreciclagem, uma intervenção em Educação Popular e Saúde do Trabalhador, realizada como extensão universitária no período de 2003 a 2006. Isso aconteceu junto a catadores de lixo, que estavam deixando de  trabalhar solitariamente  para associarem-se em um Galpão de Triagem e Separação de Resíduos Sólidos, na Restinga, um bairro de periferia, na zona sul de Porto Alegre. A principal via teórica desse projeto foi a Educação Popular em Saúde, um enfoque construído pelos preceitos freireanos.

Ao longo do Interreciclagem, nossa intervenção, aconteceu em formato de oficinas, onde psicólogos, enfermeiros, odontólogos e pedagogos, em duplas, trabalhavam com o grupo de catadores do Galpão. Eram momentos em que os trabalhadores do galpão, paravam, sentavam em círculo para discutir saúde do trabalhador, cuidados funcionais, riscos, estresse e conflitos.

Estas oficinas aconteceram inicialmente no Galpão da Restinga, mas foram se espraiando de um trabalho em rede, para a rede de serviços públicos daquele território.  Os temas: cuidado de si, meio ambiente, segurança,  prevenção a riscos e acidentes de trabalho foram sendo levados das oficinas, aos postos de saúde e escolas.

A construção de um espaço de saúde e cuidado, iniciada no território Restinga, à margem da cidade, repercutiu no centro do Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Reciclados (MNCR), assim criando um trabalho multiplicador. Dessa forma, as oficinas que atingiam 15 ou 20 pessoas passaram a dialogar com os catadores em outros espaços de formação do Movimento: nos encontros regionais, estaduais e no latino-americano.

O catador é um trabalhador invisível para a maioria das pessoas, escutá-lo foi o principal trabalho a ser feito.

Palavras simples, coração pulsante, garra nas mãos e força nos pés perambulantes por ruas e lixões. Um vaguear e catar por entre restos, ratos, vermes e baratas.  Uma vida vivida sobre lixeiras vertendo muitos desperdícios, sentindo com desagrado os péssimos odores, comendo restos de comida, circundado por moscas entre singelas putrefações.

O catador raspa o fundo da lata, ausculta o ventre dos sacos. Seu semblante rugoso e suado trás o orgulho e alegria na dignidade de um trabalho, um sorriso que assombra e mostra que felicidade é coisa também encontrável na miséria e imundície.

Um viver que existe no humano, e que ao longo do tempo recebeu diferentes nomenclaturas: burro-sem-rabo, homem do saco, garrafeiro, sucateiro, carroceiro, carrilheiro. O catador de materiais reciclados é recente, foi batizado em 2002, pela Classificação Brasileira de Ocupações, desse momento em diante ele passa a ser trabalhador reconhecido e assegurado em direitos e previdência.

O catador é personagem, como o poeta, que ao entardecer vagueia nas ruas dos centros urbanos, e manualmente trabalha sobre os dejetos e rejeitos produzidos, praticamente, em todas as atividades humanas. Num caminhar noturno e solitário cata o lixo furtivamente, chegando um pouco antes do caminhão recolher para os galpões ou lixões. Em Porto Alegre, a coleta regular é realizada, no horário da noite quando o lixo doméstico começa a sair de casa. Desta forma, a matéria-prima do catador está disponível principalmente à noite.  Nas mãos do catador, os resíduos  viram matéria reciclável e principalmente moeda de troca.

Esse andar vagueando pelos centros urbanos, apresenta o catador em movimento, como aquele que movimenta. Seu perambular segue por caminhos onde a lógica da sobrevivência, do imediato e do presente, tornam cada dia um dia.

Esse arcano vaguear o coloca em movimento, como o Louco, que no Tarot é uma carta sem número fixo. Está no fim? Ou no princípio? Geralmente é o 0, mas também pode ser o 22, horas iniciando, outras finalizando o jogo. Saber se ele é o primeiro ou o último não tem a menor importância: ele não é uma coisa, nem outra é as duas ao mesmo tempo. O catador, como o Louco, é uma criatura em perpétuo movimento, ligando o fim ao princípio interminavelmente.

Esse perambular sem moradia fixa, vagabundeando e vivendo com os restos subsiste intacto através dos tempos. O Louco, o andarilho, o velho mendigo, acompanhados do cachorro estão presentes nas ruas, essa dupla natureza segue lado a lado presente nessa imagem. O cão, o animal farejador acompanha o caminhar: instinto, sabedoria, sandice e desatino estão presentes nesse aspecto.

Catar é o primeiro trabalho para garantir a reciclagem, um fluxo de transformações. É o trabalhar com o descarte, aquilo que perdeu a vida útil e está fermentando em decomposição. Ele é o primeiro a lidar com a putrefação e o último a tocar nos restos e dejetos da vida. Ao colocar suas mãos nos resíduos e nos rejeitos, é o primeiro a movimentar outra lógica: a lógica do presente, de forma a viver com o que encontra.

Sair caminhando e catando, num furtivo trabalho o faz trocar e negociar com o que está ao alcance das mãos, dessa forma tornando moeda o lixo. Tal feito, faz essa atividade ter afinidade com Hermes. O trabalho dos catadores é dar outro destino ao material residual, ao lixo. Outro destino, direção e sentido.

O lixo vira moeda, vira energia nessas mãos. O catador vai agir, tocar para separar. Separar para trocar, destinando novos sentidos, novos contextos ao material.

Um caminhão de resíduos não vale nada, mas os plásticos separados dos cobres, separados dos papéis, separados dos alumínios, separados dos vidros …esses valem. Tem valor, viram moeda, movimentam a economia do viver. Esse movimento é energia psíquica. Separar, juntar, colher, descartar, recolher e reciclar.  Seja comigo mesmo, seja com o outro, isso é fazer alma.

Neste movimento, do que existe para o que pode vir a ser, o catador é o trabalho com o lixo. Então, olhar pelo lixo, ou através do lixo nos faz repensar as sobras cotidianas. E colocar em uma perspectiva de movimento, mudando de lugar, de estado, e assim, reciclar.

Desliteralizar, distinguir entre palavras e coisas, pode rematerializar, dar corpo, sentido e peso.  Solve et coagula. Em uma espécie de re-imaginar num jogo de matérias e materiais. James Hillman fala da alquimia como a mais poderosa metáfora para ancorar uma ideia de trabalho, nela a opus como uma ideia a ser realizada, um trabalho a ser feito.

O trabalho com a psique, o fazer alma nesse contexto difere do artesão, que com as próprias mãos se envolve e transforma a matéria. O catador trabalha sobre a matéria para movimentá-la, trocar de matéria, mudar a materialidade. Nesse trabalho com as mãos, o tátil conta mais com o sensorial que com os olhos. As mãos que tateiam os diferentes tipos de plástico tocam numa massa indiferenciada selecionando diferentes materiais, separam diferentes valores, diferenciando a materialidade do lixo.

O que é esse trabalho? Ele cria algo? Transforma o quê? Penso que o catador lida com o que existe, reagrupando ele cria novas direções para o que já teve um destino final. Negociar, transformando lixo em moeda apresenta o valor de valorizar o desvalorizado. Será a mesma moeda que ganha o psicólogo ao cultivar alma e olhar através das feridas, dos materiais putrefatos e rejeitados?

O catador no trabalho com o lixo, abandona o literalismo do dejeto, do resíduo.  Separa especificando diferentes materiais: cobre, alumínio, plástico, papel, vidro. No galpão cheio de lixo o catador é uma metáfora para nossa vida psíquica: separar, classificar, agrupar, pesar, reconhecer o valor de cada material.

Esse movimento que ele faz de sair da matéria bruta ao imaginal, do literal para o metafórico, é uma ação que remete ao psicologizar. Segundo Hillman, é um modo de transformar os eventos em experiências, é um modo de estar no mundo, um modo de viver. O que o catador e a psicologia têm a ver?

O  trabalho com lixo, com os resíduos, com os materiais é matéria prima. Este é um trabalho que a partir de um todo putrefato, separa, analisa e distingue um material do outro. Uma artesania que é própria do cultivo da alma. Hillman sobre isso afirma: “o que nos é dado não nos levará longe, algo precisa ser feito” (James Hillman, O sonho e o mundo das trevas, tradução de Gustavo Barcellos, Petrópolis: Editora Vozes, 2013, p.181).

Assim, o catar é um trabalho manual. Gustavo Barcellos reconhece nas mãos a imagem arquetípica do trabalho e, segundo Hillman, com as mãos, uma imaginação metaforicamente material incide em nosso trabalho com a psique. Pois todas as atividades manuais e sensoriais carregam noções sobre a natureza, a vida, a morte e a alma. No entanto o trabalho com a psique catador, apresenta um fazer alma que é diferente do artesão. O catador trabalha sobre a prima matéria para movimentá-la, trocar, valorar, especificar.

O catador nos ensina a psicologizar, isto é, olhar para o lixo e reconhecer o que o constitui. Separar o todo em especificidades múltiplas — decompor o que está em decomposição. Dissociar, esfacelar o que está composto, do complexo ao simples, numa busca pelo archai. É um refinamento. Extrair do refugo a essência. Extrair, sofisticar, recolher, separar, diferenciar.

A alma pede para ser trabalhada, a montanha de lixo é da ordem do indiferenciado. O catador trabalha para descobrir valor no lixo. Psicologia ou psicologizar é esse trabalho de animar a matéria, valorar, desliteralizar.

 

Bibliografia:

Barcellos, Gustavo. Psique e imagem: estudos de psicologia arquetípica, Petrópolis: Editora Vozes, 2012.

Bezerra, Angelo F. N., Catadores de “lixo”: o nome não importa, o peso é o mesmo. Recife, agosto de 2009, pesquisado em 06/06/2016 in: http://meuartigo.brasilescola.uol.com.br/historia/catadores-lixo-nome-nao-importa-peso-mesmo.htm

Hillman, James. Re-vendo a psicologia, tradução de Gustavo Barcellos, Petrópolis: Editora Vozes, 2010.

____________ Psicologia alquímica, tradução de Gustavo Barcellos, Petrópolis: Editora Vozes, 2011.

____________ Entrevistas, São Paulo: Editora Summus, 1989.

____________ O sonho e o mundo das trevas, tradução de Gustavo Barcellos, Petrópolis: Editora Vozes, 2013.

Nichols, Sallie. Jung e o Tarô. São Paulo: Editora Cultrix.