A Rainha da Boca do Lixo

By 11 de julho de 2016novembro 11th, 2023Lixo Ordinário

Juliana DelgadoA RAINHA

 

Resíduos, restos, dejetos, impurezas, excrementos, podridão, mal cheiro. Lixo.

Pode-se pensar ingenuamente que o trato com o tema seja simples, assim como se dá com facilidade a produção e o descarte de lixo em nossas vidas diárias. No preparo para o encontro com o tema, a constatação da complexidade do assunto, coisa que nenhuma ingenuidade poderia imaginar.

Envolver-se com lixo requer olhos atentos para as sobras, para o tanto (ou pouco) desperdício, para o pó acumulado. Um cenário caótico e nebuloso.

Começo a recolher os restos deixados pelo caminho. Os que por ventura caíram das grandes ilusões, das consistentes certezas, do barco das desventuras. Retratos de amores inutilizáveis, listas de telefonemas antiaderentes, medos resistentes à água, silêncios embalados à vácuo. Frases não ditas perpetuadas no tom da voz. Roupas antiquadas usadas no primeiro encontro. A própria nudez.

As cinzas na varanda, bitucas no cinzeiro, o gosto da matéria azeda. Sinto o estalo da língua erótica das mazelas num beijo infernal.

Sim, alguém se delicia com o que foi feito e desfez-se, com o sabor dos dissabores dissolvidos, catando lixo para a sobrevivência.

Esta reflexão nasce nas mãos de uma mulher. Uma rainha. A primeira imagem suscitada pelo cheiro dos restos na casa: a rainha da boca do lixo. A ideia que reinou solta, como se pudesse ganhar sentido sendo mencionada e reconectada ao tema em questão.

Um tipo de senhora das profundezas. Uma imagem marginal e sulfúrica, conhecedora dos aterros e atalhos de caminhos, dando voz aos percursos e encaminhamentos do lixo na psique.

A boca do lixo fala sobre Hécate, que ao abrir as portas, permitiu a entrada no reino psíquico dos restos. Um trabalho de voz, descritivo e imaginativo sobre o reino da deusa e seu envolvimento com o lixo.

Sendo mencionada no processo da feitura dos sonhos, a deusa Hécate aparece como encarregada dos restos ou resíduos do dia, oferecendo seu altar para o que foi descartado. Nesse contexto, James Hillman coloca: “Os sonhos são feitos de restos que pertencem à Deusa que torna sagrado os lixos da vida, de forma que tudo conta, tudo importa” (James Hillman, O sonho e o mundo das trevas, tradução de Gustavo Barcellos, Petrópolis: Editora Vozes, 2013, p. 71).

Hécate honra os restos, oferecendo alguma dignidade a esta reflexão e a perspectiva arquetípica para o tratar do assunto. Uma deusa amoral, assim como o mundo a qual pertence. A outra senhora do mundo das trevas, “particularmente adepta dos fantasmas, que tanto atraía como bania o medo e nada tinha a ver com o círculo da vida humana, ela mesma sem irmão ou irmã, sem qualquer descendente” (Hillman, O sonho e o mundo das trevas, p. 72).

A descrição: uma deusa sob a forma de uma mulher com três cabeças, empunhando duas tochas por onde segue. É seguida por éguas, lobas e cadelas. Mágica, por excelência, é a senhora das bruxarias. Seu poder manifesta-se particularmente à noite, invocada sob a luz da lua. Com aspecto terrível e infernal, pode ser benfazeja, presidindo à germinação e o parto. Protege a navegação, concede a eloquência e vitória. É guia para os caminhos da purificação. Quando as oferendas não são destinadas a nenhum deus, pertencem ao domínio de Hécate. O lixo da casa era sacrificado a ela.

Hécate é guardiã das encruzilhadas, fazendo dos caminhos cruzados seu local de trabalho e bem aqui começa o trabalho.

Alguns fatos na história apontam as encruzilhadas como locais onde eram ofertadas comidas para a obtenção de boa sorte ou ainda para a evocação pelo poder feminino. Ainda são conhecidas como moradias de divindades como os Exus dos iorubás. Em quimbundo, um dos idiomas do complexo banto, encruzilhada é “pambu-a- nijla”; provável origem da expressão Bombogira e seu local de culto.

Local propiciador do movimento e dos saberes do corpo. Sem dúvida, um ponto transformador. Encruzilhadas são caldeirões com sabedoria alquímica. Já podemos ouvir a voz de Hécate.

Após as coisas apodrecerem, amarelarem, após dar tudo errado e começar a cheirar mal, ao ser atravessada pela ruína do seu próprio caminho, a matéria espera por encruzilhamento. Imaginando encruzilhadas no caminho das sobras, desprezar linhas retas parece ser a indicação. Linhas retas tirariam as sobras do ciclo, privando-as de seu potencial de decadência como afirmação. Ao invés, considerar entroncamentos como pontos de circulação entre o que sobra e o que fica, restando a voz da deusa que diz: o que assombra é o que finca. A encruzilhada é também um ponto de reflexão.

Hécate como uma deusa de três cabeças mantém-nos escutando e olhando várias direções ao mesmo tempo, oferecendo uma perspectiva mais apurada, um olhar entrecruzado para nossos restos. Ela observa-os como um anjo negro, uma consciência que brilha no escuro e que testemunha tais eventos pois já está ciente deles a priori.

Um anjo negro que testemunha, feito raiz de árvore que se alimenta dos restos largados pelo chão. A deusa ctônica percebe os restos como fonte para o cultivo subterrâneo. A imagem da raiz prolonga sua estada até as regiões infernais e assim nos coloca em contato com a deusa. Portanto, com os restos. Desta perspectiva, restos são raízes.

Uma pausa para uma pequena digressão às raízes.

Um sonho de raiz: “minhas raízes descem por veias de chumbo e prata, por lugares úmidos e podres que exalam miasmas, até um nó central feito de raízes de carvalho”. Sonho de Virgínia Woolf descrito no lindo capítulo dedicado às raízes no livro de Gaston Bachelard (Gaston Bachelard, A terra e os devaneios do repouso, São Paulo: Editora Martins Fontes, 1990, p. 227).

Raízes percorrem localizações putrefatas, mal cheirosas, até um nó central feito de raízes de carvalho. Raízes que dão em raízes mais profundas que se entrelaçam num nó. O ponto da encruzilhada e o “fedor”.

Recorro mais uma vez a Bachelard, que neste mesmo capítulo surpreende com referências de Hegel sobre a substância fedorenta e a combustão. Hegel afirma: “é naturalmente na raiz que se chega a produzir a substância sulfúrica. Há raízes em que se forma enxofre verdadeiro” (em Gaston Bachelard, A terra e os devaneios do repouso, São Paulo: Editora Martins Fontes, 1990, p. 244). Contribuições das raízes para a realização do enxofre. Seu desejo (o do enxofre) é a sua própria realização verdadeira, aquele “lixo terreno” sem o qual a obra não tem vida.

O enxofre é substância amarelecida produzida pela combustão dos restos. Amanhece de nossas decomposições. Amarelecer é a ação calorosa do enxofre que tinge a matéria seca, putrefarta, animando-a com seu poder vivificante de trazer mudanças. Seu “fedor” significa que há trabalho sendo feito.

As mudanças trazidas pelo enxofre não implicam em claridade após decadência, não tem que aparecer como resultado de um processo. Segundo James Hillman, “o sentimento de putrefação é em si uma conscientização; o sentimento mau e errado já é o enxofre experimentando sua própria ferida” (James Hillman, Psicologia alquímica, tradução de Gustavo Barcellos, Petrópolis: Editora Vozes, 2011, p. 320).

Nesse sentido, a matéria ao produzir enxofre, conscientiza-se de seu fracasso. O amarelo traz a dor do próprio conhecimento. A alma sofre sua própria compreensão. Mais uma vez, James Hillman: “A qualidade amarela do enxofre trouxe para fora todo o amarelo secreto do metal e o transmutou numa espécie de ouro no qual o amarelo era abundante e jorrava (Hillman, Psicologia alquímica, p. 329). Ao final da obra alquímica, o triunfo do enxofre.

Triunfam também as mazelas sob a luz do lixo. A aurora. Uma nova consciência foi gerada pela morte amarela e assim a mente incorporada está pronta para chegar ao mundo. Dentro do amarelecimento, esconde-se o sol da rubedo, sempre ativo a tornar-se clarificante. Assim como o amarelo contém a decadência, contém da mesma forma significações brilhantes e alegres como o nascer do sol e flores primaveris. A escuridão e a iluminação como significações simultâneas presentes no amarelo.

É desse lugar decadente e iluminado que Hécate fala, como uma presença cintilante no breu. Diferencia-se, desse modo, de Perséfone, a menina que se torna rainha das profundezas através do rapto. Hécate, ao contrário, pertence desde sempre às profundezas da terra. Abriga-se nas cavidades da alma.

Assemelha-se melhor à imagem de outra mulher, tão conhecida nos cultos religiosos: as Bombogiras ou Pomba-giras. Mulheres que trabalham no denso da alma, com o peso das águas tóxicas que ainda não encontraram seu destino, com a circulação do fogo para a purificação das águas, com a escassez da terra para a germinação de sementes mais produtivas. Nos ajuda no fortalecimento de raízes ao afirmar nosso lugar de pertencimento, apontando uma direção para fora, um devir de beleza para o mundo.

Uma anima que revira lixo, sem tentar salvá-los moralmente. Hécate seria o mito presente nas imaginações do lixo. De acordo com Hillman: “o lixo da alma é primordialmente salvo pela benção de Hécate, e mesmo o lixo que fazemos de nós mesmos pode ser retornado a ela. A vida bagunçada é um modo de entrar em seu domínio e tornar-se um ‘filho de Hécate’. Nossa parte é apenas de reconhecer que existe um mito na confusão, de forma a jogar os resíduos do dia no lugar certo, ou seja, coloca-los no altar de Hécate” (Hillman, O sonho e o mundo das trevas, p. 72).

O mito nos coloca nas mãos cansadas da deusa, tão rejeitada e pouco falada. Nelas nossos estragos reinam e são honrados ao exibir sua luz amarela dentro de um processo no qual nós próprios estamos deixando nele uma indelével mancha amarela. Um grão maduro. Rastros pelo caminho. Nossos restos.